No País dos Arquitectos é um podcast criado por Sara Nunes, responsável também pela produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, que tem como objetivo conhecer os profissionais, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa contemporânea de referência. Com pouco mais de 10 milhões de habitantes, Portugal é um país muito instigante em relação a este campo profissional, e sua produção arquitetônica não faz jus à escala populacional ou territorial.
No episódio desta semana, Sara conversa com o arquiteto Ricardo Bak Gordon sobre o projeto do Museu dos Coches em Lisboa, desenvolvido em parceria com Paulo Mendes da Rocha e o escritório MMBB Arquitetos. Ouça a entrevista e leia a transcrição da conversa, a seguir:
Entrevistas da série "No País dos Arquitectos":
- Carrilho da Graça
- João Mendes Ribeiro
- Inês Lobo
- Carlos Castanheira
- Tiago Saraiva
- Nuno Valentim
- Nuno Brandão Costa
Ricardo Bak Gordon: Obrigado. Fico muito feliz por este convite. Tenho muito gosto em participar no vosso programa.
Sara Nunes: Nós estamosbastante entusiasmados até porque nos disseram que o arquitecto é um bom conversador. Este projecto de que vamos falar foi realizado em conjunto com o arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha que infelizmente nos deixou há pouco tempo, mas que continua a viver entre nós através dos seus ensinamentos e da sua arquitectura. Começava por lhe perguntar, por um lado, como é que surgiu este projecto no seu atelier e como é que surgiu a oportunidade de trabalhar com alguém do outro lado do mundo, que é o caso do arquitecto Paulo Mendes da Rocha?
BG: Esse é um óptimo modo de começarmos a nossa conversa porque, de facto, se a arquitectura nos liga uns aos outros, a Arquitectura não é mais do que uma consequência da nossa própria vida. Portanto antes mesmo da nossa disciplina e do nosso trabalho, existe uma rede que nós vamos contruindo e cruzando entre nós, os vivos (as pessoas). Por outro lado, por vezes, também nos encontramos e nos buscamos de forma mais improvisada, menos premeditada... e muitas vezes perseguimos as pessoas por quem temos admiração e vamos ao encontro delas.
SN: Foi o seu caso, Ricardo?
BG: Foi exactamente o meu caso e recuamos a 1995, quando eu fiz um concurso em Portugal que era o concurso internacional para a residência da Embaixada de Portugal em Brasília e que, curiosamente, fui surpreendido por ganhar o primeiro prémio. Este era o meu primeiro prémio de sempre num concurso e falamos de um concurso que era para construir a dez mil quilómetros de distância. Bem... como pode calcular...
SN: Foi logo um grande desafio!
BG: Foi um desafio imenso em que eu, de algum modo, assumi também uma grande responsabilidade. Portanto, comecei logo a pensar que queria ir para o Brasil conhecer melhor aquele país. Aliás, depois até houve uma série de reflexões que fiz e que apliquei como, por exemplo, o de querer fazer o projecto quase totalmente em território brasileiro, no sentido da escolha dos materiais, das tecnologias, dos próprios parceiros. Bom... mas ainda antes disso, perante aquela surpresa, eu decidi ir ao Brasil e falar com a pessoa que eu mais admirava do ponto de vista disciplinar. Eu não o conhecia e falamos aqui, claro, do arquitecto Paulo Mendes da Rocha. Aliás ele, naquela época, era relativamente pouco conhecido na Europa. Existia uma única publicação, que era um livrinho de Gustavo Gil e que tinha acabado de sair há pouco tempo. Nós tínhamos esse livro e, através dele, descobrimos a figura e o arquitecto Paulo Mendes da Rocha. Eu, perante esta surpresa, decido contactar o arquitecto Paulo Mendes da Rocha, no Brasil. Isto passa-se em 1996, ao contactá-lo digo ao arquitecto quem sou, falo do prémio que ganhei e explico-lhe que vou ao Brasil e gostaria de o conhecer. Assim foi... Fui ao Brasil e até é muito engraçada a história. Vou contá-la porque acho que pode ser simpática, até para os nossos colegas mais novos... Até quando muitas vezes estamos a acabar o curso e quando estamos a começar a estabelecer relações entre nós.
SN: Estamos curiosos!
BG: Durante a primeira semana, no Brasil, tenho uma série de reuniões e de muitos assuntos a tratar, mas ia sempre tentando falar com o arquitecto Paulo Mendes da Rocha, que logo nos primeiros dias me vai dando um conjunto de desculpas... E eu penso: “Coitado do arquitecto Paulo Mendes da Rocha, que não tem tempo, nem paciência com um miúdo que está a chegar de Portugal e esse miúdo tem aqui, de facto, um interesse”... Mas estava redondamente enganado. No último dia já estava quase para me vir embora e telefonaram-me para o hotel, dizendo: “Gordon, onde é que você está?”. E eu respondo: “Estou aqui no hotel e à noite já me vou embora”. E ele diz: “Espera aí!”. Pouco mais do que 20 minutos depois chega num táxi e, logo no imediato, tivemos uma relação e um encontro encantador em que eu lhe mostrei o projecto em Brasília em que ele falou do Heitor Villa-Lobos e de música. Fiquei magicamente atraído pela figura de Paulo Mendes da Rocha. Daí para a frente, fui muitas vezes ao Brasil e ficamos amigos. Aí também serve dizer que é difícil não ficar amigo do Paulo Mendes da Rocha!
SN: É verdade! (risos)
BG: É, de facto, uma pessoa absolutamente envolvente e de uma intensidade nessa mesma envolvência. Essa envolvência desperta relações de afecto imensas. Depois sempre que eu fui Brasil, por outras razões, e quando o encontrei em Portugal também continuamos em contacto...
Quando em 2007 (creio eu), o governo de Portugal decide convidar o arquitecto Paulo Mendes da Rocha para fazer o novo Museu dos Coches, o arquitecto Paulo Mendes da Rocha pediu e decidiu que queria constituir uma equipa de ambos os lados do Atlântico. Assim o fez e, efectivamente, convidou-me, nessa altura, a mim para ser o seu partner deste lado de cá, além do engenheiro Rui Furtado e da AFA Consult, enquanto responsáveis pelos projectos das engenharias. Não sei se tem presente, mas também é interessante porque o arquitecto Paulo Mendes da Rocha, durante a ditadura militar, foi impedido de assinar projectos por ser um homem de esquerda, contrário ao lugar onde estava instalada essa ditadura...
A partir daí, ele introduziu um sistema de trabalho muitíssimo interessante que fez dele uma pessoa não só muito livre, mas também muito conectada com todas as gerações porque introduziu este sistema de trabalho em que deixou de ter atelier próprio no sentido da produção dos projectos dentro do próprio atelier e passou a ter uma produção de projecto, que tinha sempre a ver com uma relação com alguns ateliers satélite, que eram normalmente de jovens arquitectos, que tinham sido seus alunos na faculdade. Alguns erampessoas que tinham maioritariamente estudado e trabalhado com ele de gerações bastante mais novas.
Portanto, durante muitos anos... Eu diria que durante quase 40 anos (os últimos 40 anos da sua vida de trabalho) – que, aliás, correspondeu a uma substancial produção – quando solicitavam um trabalho ao arquitecto Paulo Mendes da Rocha ele avaliava o trabalho e depois também avaliava qual dos ateliers era o mais adequado para desafiar esse projecto. Os projectos eram desenvolvidos em parceria, mas sediados nesses tais ateliers de terceiros. Portanto, para ele foi muito natural estender esta metodologia à Bak Gordon e a Portugal. E, nós, de algum modo também percebemos que com ele era muito fácil e muito entusiasmante trabalhar!
SN: Para além deste espírito de colaboração, que o Paulo Mendes da Rocha sempre imprimiu ao longo dos anos (como acabou de referir)... O que é que lhe ensinou o arquitecto e o que é que lhe ensinou a Arquitectura Brasileira ao longo destes anos?
BG: Muita coisa e coisas muito interessantes e muito variadas. Eu, por exemplo, quando comecei a ir para o Brasil, por via do projecto da residência da Embaixada em Brasília, uma das coisas que mais me interessava tinha a ver – e vou falando de alguns assuntos quase avulso porque não estão hierarquizados – com uma ideia que ainda hoje me interessa muito e que está relacionada com esta questão do interior/exterior, ou também com aquilo que nós na Europa consideramos - a estanquidade. Ou estamos dentro, ou estamos fora porque, de facto, temos um clima...
SN: Que nos obriga a isso...
BG: E o que é extraordinário é quando, de repente, estamos a trabalhar num território onde isso se estende quase ao limite de se fundir numa espécie de espaço infinito, que é a transição entre o estar dentro e o estar fora. Portanto, alonga-se esse território e isso abre possibilidades ao pensamento do espaço e do projecto muitíssimo interessantes, mas isto é um pequeno detalhe. Talvez uma das coisas mais marcantes do conhecimento e da experiência do Brasil tenha, efectivamente, a ver com a capacidade de fazer algo acontecer com poucos recursos e quanto é que se consegue fazer com esses poucos recursos.
Estou a recordar-me de uma série de edifícios modernos e de construções modernas em que com poucos recursos – e refiro-me a um vocabulário, a uma paleta de materiais e de soluções técnicas relativamente sumária – se pode produzir coisas tão fortes e territórios tão intensos de transformação das cidades e dos lugares. E isto com pequenos gestos é assim uma espécie de síntese. Isso interessou-me sempre muito! É claro que eu nestas minhas viagens ao Brasil também assentei muitas vezes em São Paulo que é uma espécie de metrópole/país porque é maior do que Portugal inteiro em número de habitantes.
SN: Estamos a falar de quantos habitantes, Ricardo?
BG: Na altura tinha 13 milhões de pessoas. Agora não sei se tem mais, mas estamos a falar de uma metrópole com esses milhões de pessoas... Uma metrópole indomável também porque nós sabemos que a cidade é um território de sobreposições vivo. Ou seja, uma espécie de palimpsesto em que se vão sobrepondo os tempos e as transformações. Agora é só imaginar isso quando essa sobreposição se multiplica para uma metrópole que tem 13 milhões de habitantes. Trata-se de uma convulsão, que tem muitas coisas positivas. Como sabemos podemos sempre olhar para os dois lados de uma moeda. Desde logo por ser possível, de algum modo, olhar para as virtudes de um território que convoca 13 milhões de seres vivos, no mesmo instante.
SN: No mesmo espaço...
BG: E no espaço falamos também das coisas positivas que daí advêm. Depois ainda mais uma nota para falarmos do que é que o Brasil e o que é que a Arquitectura Brasileira nos pode emprestar como reflexão. Naturalmente que o arquitecto Paulo Mendes da Rocha é o fundador, juntamente com o arquitecto Vilanova Artigas, naquilo que nós chamamos a escola modernista de São Paulo, a Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Sendo que a fundação desta escola é assente numa espécie de revolução política e social que se revela na prática da Arquitectura, mas que a montante dessa mesma expressão arquitectónica tem fundamentos políticos muito fortes. Alguns deles são fáceis de identificar, nomeadamente a ideia de que o chão da cidade é um território... Primeiro, é um espaço público sempre; depois é um território infinito que não deve ser sectorizado, bloqueado e limitado. E isso faz com que, levado à letra, nas propostas urbanísticas e arquitectónicas, tenha feito com que tantas destas obras de referência sejam construções levantadas do chão. Estou a referir isto e quando chegarmos ao ponto da nossa conversa em que falaremos do Museu dos Coches já vamos apreciar todas estas virtudes.
SN: Sim!
BG: Estas construções levantadas do chão fazem com que a cidade flua e seja contínua sob estas mesmas estruturas. Ao mesmo tempo, obrigam a convocar outros temas da Arquitectura como, por exemplo, a estrutura. Pois se nós levantamos do chão construções importantes tudo isso necessita de uma estrutura.
SN: Sim, elas não levitam ainda! (risos)
BG: (risos) Exactamente! São precisas essas estruturas que amparam essas decisões. Enfim... E depois uma ideia de condição também da construção da cidade para todos, que eu acho que é um dos temas que o arquitecto Paulo Mendes da Rocha fez questão de lutar toda a sua vida porque existe esta ideia de que o espaço é todo público.
E isso é muito interessante ver como é que ele defendeu, como é que ele lutou por estes pensamentos e também ao mesmo tempo esta ideia do mundo moderno, a escala do Brasil, a escala do continente sul-americano. Ainda agora... enfim... lamentavelmente... e depois desta triste notícia que tivemos do seu falecimento... acabei por escrever umas linhas que estão no website da Ordem dos Arquitectos. Escolhi uma ideia do Paulo Mendes da Rocha para ilustrar aquilo que era o nível e a sua escala do pensamento.
Contei esta história de um trabalho, de uma investigação que lhe era muito cara e que ele referia muitas vezes e que tinha a ver que quando lhe perguntavam por Brasília, por exemplo... ele era bastante contrário à ideia de Brasília no sentido de achar que esta centralidade física tirava a compasso... para encontrar um lugar onde se vai fazer uma nova capital simbólica, mas ao mesmo tempo um pouco panfletária do regime...
Ele considerava que não seria isso que faria a aproximação entre os povos e entre as gentes. E contrariava, por exemplo, essa tese com uma imagem que ele próprio construía que tinha a ver com o atravessamento da América Latina através de uma rede fluvial. Ou seja, continuar e estender a estrutura fluvial, já existente, e com pequenas intervenções técnicas conseguir ligar e atravessar toda a América Latina com esta rede de rios e de canais. E que isso, sim, seria um modo não só para ligar também as diferentes gentes e povos que, entretanto, habitam os vários países, mas também para levar o desenvolvimento e uma rede que amparasse todos e não só esta ideia simbólica quase artificial da ideia do governo e do Estado representados na cidade, fisicamente centralizado. Portanto, cá estão... Coisas que por um lado parecem ambições...
SN: O Paulo Mendes da Rocha era um sonhador!
BG: Exactamente!
SN: Mas um sonhador que nos inspirava, não é?
BG: Exactamente!
SN: Vamos falar agora um pouco de Geografia. Ricardo, este edifício do Museu dos Coches, do qual vamos falar hoje, situa-se em Belém. Esse mesmo espaço é marcado por uma série de construções que no seu tempo foram inovadoras e continuam a marcar os dias de hoje. São exemplo disso o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém. Simultaneamente, esses edifícios também carregam a nossa História e o imaginário do que é Ser Português. Como é que foi trabalhar num território com tanta História e Património?
BG: Bem... Eu penso que isso é talvez uma das coisas mais interessantes naquele lugar porque definitivamente é o território monumental da cidade de Lisboa por excelência. Por um lado, é já hoje possível ler uma espécie de território quase geometrizado, uma vez que ele tem esta figura geometrizada em frente às águas, à mercê de uma transformação muito artificial, muito marcada pela decisão humana que foi o aterro. De repente, temos um paralelepípedo ou uma figura geométrica quase virada para o mar, ou para o estuário. Tudo isto marcado por 500 anos de História que é, de facto, importante. Temos a Torre de Belém que talvez seja a primeira marca... E não é a primeira porque, entretanto, ainda havia em Belém a fundação de assentamentos de gentes... mas vamos falar daquilo que lá está construído. Temos ali 500 anos de História, que vai avançando em várias direcções até chegarmos ao próprio palácio real, a Exposição do Mundo Português, o Centro Cultural de Belém e tínhamos, de facto, uma espécie de remate nascente deste território que é muito claro do ponto de vista do seu impacto urbanístico, monumental e cultural que estava por resolver.
E estava por resolver porque era um território morado, eram umas oficinas de material eléctrico. Portanto, tratava-se de um lugar que não estava absorvido pelo espaço público, até pelo contrário. E quando se levanta a hipótese de poder completar esta figura urbana com este edifício que, de algum modo, faltava para se poder dizer que ficava completo... colocava-se também a pergunta de como fazer e acho que ali se fundaram uma série de convicções que tinham a ver com o pensamento histórico da própria Arquitectura e como é que se chega ali. Ou seja, se por um lado o terreno não era de facto tão regular assim... para quem vem da Avenida da Índia parece regular, mas na verdade é um espaço triangular, que tem uma parte que se aproxima da Calçada da Ajuda e da Rua da Junqueira naquela esquina que é muito forte, virada para o jardim. Depois entra por ali adentro e encontra um casario, que está na Rua da Junqueira e que teve toda a vida umas costas voltadas para um não-lugar que agora foi transformado numa nova frente (um fronte digamos assim)... E depois há então uma série de pensamentos. Por um lado, arrumar um programa complexo porque não é fácil e são objectos muitíssimo grandes, a colecção dos coches e um programa que tem mais do que a própria exposição com um auditório, bibliotecas, áreas de reserva, de manutenção...
SN: Tem oficinas também. Eu achei isso fascinante!
BG: Tem umas oficinas muito bem apetrechadas, muito bem equipadas, mas o que eu gostava de sublinhar ainda dentro desta ideia do programa... também recordo que foi pedido para lá do Museu dos Coches uma passagem pedonal e ciclável, que atravessasse a linha de caminho-de-ferro e que chegasse à frente das águas. Portanto, esta manipulação do programa fez com que o conjunto edificado viesse a considerar aquilo que se chamou o edifício principal, o edifício expositivo e o edifício anexo.
Ou seja, esta conjugação de duas figuras sendo o mesmo... Aliás, o arquitecto Paulo Mendes da Rocha referia muito esta ideia quase renascentista do anexo, que é uma figura muito clássica de que ao desmontar o programa em dois elementos acaba por se estabelecer imediatamente um diálogo. Esses dois elementos são a mesma coisa, mas podem começar a definir e a estruturar um determinado território. Aí também vale dizer que... E eu gosto muito de recordar esta ideia, que era algo que o arquitecto Paulo Mendes da Rocha também mencionava muitas vezes em que ele referia que se interessava muito mais pela disposição das coisas no território do que propriamente pelas figuras da Arquitectura. Era um homem que nunca se exaltava muito com a figura e com a forma, mas sim com a disposição do espaço. E esta ideia da disposição do espaço em que uma vez acertada essa disposição do espaço, o espaço já está a ser transformado só porque, entretanto, foi activado com a posição das novas funções.
SN: Sempre com esta preocupação do espaço público, não é? Com esta ideia de cidade...
BG: Exactamente! E, portanto, o que se fez ali foi não só criar esta dicotomia entre duas figuras que são o mesmo ser – anexo e o pavilhão expositivo –, mas principalmente a construção de uma enorme praça a que chamamos durante o projecto de ‘Praia’.
Por um lado, porque era a Praia de Belém. Todos sabemos isso e, por outro lado, porque quando começámos a escavar encontramos areia branca finíssima, antes do aterro, e era de facto ali a Praia de Belém. Portanto, esta praia, esta praça infinita que se estende sob o edifício cria uma possibilidade nova nesta estrutura de Belém. Ou seja, nós temos uma Belém, de algum modo, relativamente formal no sentido do próprio desenho cartesiano, das estruturas, dos vazios, etecetera. De repente, aproximamo-nos do Museu dos Coches e temos, por um lado, uma resposta suficientemente robusta e que constrói o limite oriental de Belém, mas ao mesmo tempo quando começamos a aproximar-nos deste lugar percebemos esta informalidade, este gozo do espaço público, onde não há uma frente e um tardoz, onde se pode fluir para a praça de múltiplas direcções.
Aliás, nós reconstruímos aquilo que era o muro da praia, que é o muro que está na praça do Museu dos Coches e esse muro – como se recordam as pessoas que já visitaram – é pautado por uma quantidade de escadas e rampas que descem à praça. Do mesmo modo que em cima foram feitas umas pequenas pracetas e defronte a algumas pequenas casas...
Ou seja, este casario da Rua da Junqueira acabou por se constituir como mais um elemento que participa na construção daquele lugar como um todo. E ao mesmo tempo também muito ligado à ideia da imprevisibilidade da vida. Eu recordo esta frase do arquitecto Paulo Mendes da Rocha, que todos nós que privamos com ele não esquecemos mais, em que ele dizia: a Arquitectura serve para amparar a imprevisibilidade da vida. E, de facto, quando se vê o desenho e quando se percebe como é que aquele muro se chega para a frente e para trás e deixa aparecer uns terracinhos e umas praças sobranceiras à praça grande, que amanhã no futuro não se sabe o que serão... mas sabe-se que está ali em potência no espaço para que aconteçam e se deixam activar muitas coisas possíveis e curiosas que entretanto hão-de chegar. Enfim... É um lugar bastante diferente e ao mesmo tempo depois trabalha com valores que também são consentâneos com uma espécie de volumetria numa cota exacta, ou numa altimetria exacta que assiste às restantes construções de Belém para não ferir nenhuma susceptibilidade no que diz respeito às altimetrias e por aí fora.
SN: Outra coisa que eu acho muito curiosa neste projecto é este cuidado em responder, por um lado, a um programa que é um programa museológico, onde são albergados estes coches. Ou seja, por um lado há um território, uma história muito forte no exterior, mas também há uma forte história no interior que são estes coches que o museu vai albergar, mas sei que também defende que este espaço não poderia ser apenas pensado para os coches, e sim a pensar no futuro que os espaços devem ter, tendo em conta alguma da sua flexibilidade de se transformarem ao longo dos séculos. Fale-nos um pouco sobre isso, Ricardo.
BG: Isso, no fundo, tem muito a ver com uma ideia... Penso que a certa altura no pensamento, ou no estudo da nossa disciplina talvez se possa dizer que se valorizou a ideia do programa funcional. Pode estar demasiado sobrevalorizado porque sabemos através da História da Arquitectura que há edifícios... e nós, naturalmente, em Portugal temos aqui, por exemplo, uma colecção de estruturas conventuais que todos nós durante muitos anos e muitos séculos acabamos por usar de uma forma absolutamente rica e livre...
E eu recordo que não há aqui ninguém que esteja a ouvir esta conversa que não tenha ido já a uma estrutura conventual, que entretanto não foi transformada em hospital, em escola, universidade, museu... Portanto, o que é que isto nos quer dizer? Isto diz-nos que um bom edifício, uma boa espacialidade pode ter múltiplas funções ao longo da sua vida. De facto, houve aqui um período histórico em que existiu esta ideia da forma e da função - e a função como se ela obrigasse a uma forma única. Gosto de imaginar que os lugares construídos podem amparar diversas utilizações. E se, de facto, se trata de uma obra pública com espaços de grande escala... estou convencidíssimo que este museu, por exemplo, foi feito para albergar uma colecção que precisa de estar protegida da radiação solar, por exemplo. Sendo assim, tem algumas condicionantes que não permite todas as diferentes funções, mas permite ser um belíssimo museu para uma quantidade de outras possibilidades, embora também admito que aquela colecção que existia e que existe é única no mundo. Espero que esta colecção dos coches portugueses esteja preservada e protegida quase ad eternum nesta espécie de estojo levantado do chão.
SN: É quase como se fosse um coche também, não é? No fundo, os coches também têm aquele levantamento, têm as rodas. (risos)
BG: Exactamente! (risos)
Agora há outra coisa também muito bonita que vem do Brasil. Enfim... o próprio arquitecto Vilanova Artigas tem uma frase de que eu gosto muito em que dizia que a casa é uma cidade e a cidade é uma casa. No fundo, faz-nos pensar no modo como habitamos os lugares e como podemos complexificar também a nossa experiência dos lugares, encontrando pequenos prazeres e distinções de espaço para espaço e de lugar para lugar. O Museu Nacional dos Coches acaba por ser construído como se ele próprio fosse uma cidade. Quero com isto dizer, a própria rede de percursos interior/exterior, a fusão entre o público e o privado, a maneira como a passagem pedonal que é um espaço público que se frequenta sem ter que ir ao museu, mas entretanto nasce, cresce e encaracola-se dentro do próprio edifício anexo, fundido com as pessoas que entretanto estão a visitar o museu. Quando atravessa na frente o pavilhão expositivo está de cota com as pessoas que, entretanto ,estão lá dentro, mas que se vêem umas às outras através de um vão ocidental... O percurso interior na cota alta para ver os coches desde cima. Como sabe, os coches eram bastante ornamentados na sua cobertura, visitam-se e tira-se o gosto...
SN: Pois é, é por uma cota mais alta...
BG: Por uma cota mais alta que, entretanto, atravessa os salões no sentido transversal. Enfim há uma riqueza de promenade nessa experiência do próprio edifício que também tem a ver com essa ideia de desfrutar do lugar como se de uma cidade se tratasse.
SN: Eu tive oportunidade de filmar este edifício quando esteve cá também o Pedro Kok e o Gabriel Kogan. Uma das coisas que percebi em conversa com eles e também com outros arquitectos brasileiros que estavam connosco foi que o processo de trabalho dos arquitectos brasileiros passa muito pelo desenho do corte de um edifício. Por outro lado, tenho a sensação que, no caso dos portugueses, passa muito pela planta. Qual é que foi o processo de desenho deste edifício? Também teve muitos cortes, ou passou mais por plantas, teve muitas maquetes? Como é que foi?
BG: Para já é muito interessante dizer isso porque já ouvi esta ideia também de alguns colegas de que, de facto, a Arquitectura moderna brasileira trabalha muito no sentido transversal. Ou seja, no perfil e no corte; enquanto que nós usamos muito a planta como uma espécie de assentamento para trabalhar as relações com o lugar e, portanto, é interessantíssimo porque tem muito de verdadeiro. Quer dizer, nós portugueses temos uma escola onde, de facto, usamos muito o lugar como fonte de ponto de partida e de alimentação para o projecto. Isso quer dizer muitas coisas, mas também quer dizer um trabalho em planta de aproximação e afastamento, de cozimento com aquilo que de facto nos envolve... E que acaba por ter lugar e uma impressão numa planta.
Um aspecto que eu acho extraordinário – e vou já responder à pergunta – é que eu acho que o Museu dos Coches, de algum modo, sobrepõe essas duas preocupações porque levanta-se do chão e estuda muito no seu sentido transversal, seja do ponto de vista técnico, ou da estrutura... No fundo, o que é que é aquele pavilhão? Aquele pavilhão é uma coisa incrível. Tem três apoios e 140 metros, portanto aquilo teve um trabalho estrutural absolutamente raro em que as paredes são as suas próprias vigas para se poder segurar no ar. E, de facto, é um elogio à estrutura e à técnica, mas ao mesmo tempo estas várias interlocuções do edifício anexo, a relação que ele tem com o pavilhão expositivo, o modo como ambos lêem o cheio e o vazio porque também há uma implantação que tem relações com este casario (como falámos). E é muito engraçado perceber que há um compromisso destas duas direcções. E estas duas direcções levam àquela solução. Quanto ao modo de fazer vale a pena dizer que o arquitecto Paulo Mendes da Rocha tinha uma coisa extraordinária porque começava muitas vezes os projectos e era um homem mental...
SN: E muito culto, não é?
BG: E muito erudito, sim. Muito culto e muito mental. As suas respostas eram quase sempre encontradas no espírito da mente e pouco precisava daquilo que nós usamos muito que são os instrumentos da investigação da nossa disciplina, sejam eles desenhos, cortes, maquetes e por aí fora...
Há uma coisa muito engraçada que ele fazia e fez até ao fim da sua vida que é aquilo que ele chamava de ‘Maquetes de Papel’. Aliás há um livro que se chama ‘Maquetes de Papel’. São umas maquetes pequenas feitas por ele mesmo, cortadas ali em cima da mesa onde ele trabalhava. De facto, quando ele é desafiado por este projecto há uma primeira maquete que ele faz com as suas próprias mãos e que, de algum modo, já continha o DNA integral deste trabalho. E depois a partir daí foi muito fácil para todos nós criarmos esta equipa. No início reunimo-nos e trabalhamos muito no Brasil e fazíamos sessões extraordinárias. Naturalmente sessões que eram intercaladas não só com conversas de grande divagação e entusiasmo, como também das outras coisas que fazem parte de uma vida rica de emoções... íamos jantar e almoçar juntos com essa equipa, tomar os nossos drinks com o Paulo que eram mais ou menos indispensáveis e trabalhar intensamente de uma forma muito completa no sentido de que o debate e as conversas eram convocadas juntamente com o desenvolvimento do projecto.
E depois a partir do momento em que entramos mais na parte do desenvolvimento e do detalhe foi também o momento em que o projecto de alguma maneira... Enfim... ele foi sempre desenvolvido aqui em Portugal desde o estudo prévio, mas é óbvio que o projecto de execução era uma coisa pesada. E eu recordo e acho muito interessante porque durante o projecto de execução muitas vezes eu perguntava ao Paulo de como é que ele gostaria de ver isto desenvolvido. E ele respondia quase sempre mais ou menos a mesma coisa que era: “Qual é o modo mais eficaz e eficiente de o fazer?”
Aquilo que é mais operativo, aquilo que é melhor recebido pelos operários. Quer dizer, havia sempre uma ideia quase holística de olhar para este problema do ponto de vista de fazer bem para todos. Ele tinha uma preocupação de perceber se o material vinha daqui, se a pegada de carbono iria ser efectivamente eficaz...
SN: Até aos trabalhadores.
BG: Até aos trabalhadores, exactamente, que aliás o emocionavam sempre também muito.
SN: Para finalizar, eu perguntava-lhe como é que foi recebido o museu, quer pelas pessoas que trabalham lá, quer pelas pessoas que o visitam. Qual foi o feedback mais surpreendente que ouviu sobre o museu?
BG: Eu creio que há dois momentos e não podemos esquecer que há um tema ligado a este museu que também está para se diluir ainda ao longo do tempo, mas que tem a ver com o arranque da própria utilização e da abertura do museu ao público. Não sei se tem presente, mas nós terminámos o edifício em 2012...
SN: E só em 2015 é que abriu...
BG: Exacto. Foi um pouco sofrido! Penso que estas coisas precisam de tempo. Aliás, eu tenho falado muito do Museu dos Coches... Falo muitas vezes desta experiência...
SN: E de forma muito apaixonada, Ricardo. Ainda parece que está envolvido no projecto! (risos)
BG: Isso já falo normalmente... (risos)
Fico sempre com relações fortes com os trabalhos que faço e participo, sendo que este tem um sabor especial. Há uma coisa que é muito interessante é que... Hoje em dia vivemos sempre um certo sentido de urgência. Parece que as coisas são urgentes.
SN: Tudo é para ontem.
BG: Exactamente. E o que eu acho que este trabalho tem e que eu sinto que também aprendi com a minha relação com o Paulo Mendes da Rocha tem a ver com o Tempo. Estes não são assuntos para serem fechados, são pelo contrário para se irem abrindo, desfrutando e deixar que a Vida e o Tempo os contagie de alguma forma. Isto para dizer que eu acho que o Museu dos Coches curiosamente ainda tem muito para dar e ainda se está muito por ver do potencial daquele lugar, seja do ponto de vista do edifício propriamente dito, mas mais da transformação urbana, que está eminente naquilo que foi feito como novo lugar de cidade.
SN: Como se fosse uma primeira pedra.
BG: Exactamente. Sinto muito isso. Quer dizer, quando às vezes passo por lá e vejo que há umas obras ou um casario lá por trás, ou porque a praça ainda está um bocado vazia... Agora tivemos esta chatice da covid-19. Eu imagino aquela praça activada, cheia de gente, com concertos de Verão, ao ar livre, com gente a passar. Só agora com pouco mais de um ano é que foi aberta a passagem pedonal. Ou seja, ainda está tudo ali a acontecer. Quanto à experiência do lugar propriamente dita, eu diria que as reacções... Há muita gente que é absolutamente surpreendida, quer quando visita o edifício pela espacialidade inesperada. Estamos a falar de duas salas de exposições com 140 metros por 20 cada uma. Não há outras desta dimensão...
SN: Sem pilares, não é?
BG: Sim, sem pilares. E depois tem outras coisas que já são mais para os nossos pares, que gostam de ver as coisas construídas como uma laje de betão única, sem juntas,140 metros de comprimento, dentro da sala, que foi descolada das paredes porque, entretanto, a estrutura do edifício é metálica. Portanto, o betão e o aço têm que estar separados. E depois tem outra coisa que também na visita ao interior há um certo sentido pedagógico para compreender a História e o modo como é construído, revelar o desenho da estreliça sem a expor completamente, ter uns véus metálicos que arrumam o espaço a fazer de tecto suspenso, mas simultaneamente tentar perceber como é que as coisas se constroem para lá desse véu, ou desse tecto suspenso. É muito interessante porque, do ponto de vista construtivo e técnico, há muito para saborear numa visita ao Museu dos Coches e muito disso fica para lá da colecção, naturalmente.
SN: Ricardo, muito obrigada por nos fazeres viajar quer ao Brasil, quer a Belém, quer por este museu. Muito obrigada por esta conversa e por falar de forma tão apaixonada do projecto e pela bonita homenagem que fez ao arquitecto Paulo Mendes da Rocha.
BG: Eu é que agradeço. Uma boa tarde para vocês todos! Muito obrigado!
Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.